sexta-feira, 31 de maio de 2013

SOLIDÃO, QUE NADA

muito além das duas horas
a noite fria não dava trégua
as garrafas de cerveja caídas no chão,
perto do sofá
próximas aos pares de meias
e peças de roupas
já eram parte do cenário
havia muito tempo
ninguém entrava naquele apartamento
que já tinha tomado um cheiro próprio
de mofo, álcool e cinzas
o retrato da solidão
a única coisa viva ali na sala
um peixe
beta
e azul
talvez tão solitário quanto
o beta
em seu pequeno aquário quadrado
com a água suja demais pra ele
a essa altura
a tevê velha
com má sintonia
tela chuviscada e som chiado
empoeirada
com a antena do sintonizador uhf
torta
a palha de aço na ponta
o chão cheio de gordura
pratos pela mesa de centro
cinzeiro cheio
e as guimbas de cigarro transbordavam
o braço do sofá
queimado pelo fumo incessante
a sala silenciosa
convidava a tristeza a entrar
especialmente em noites frias como aquela
a janela pequena
com uma fina cortina pra segurar a luz
do poste em frente
luz suficiente pra enxergar o caminho pro corredor
curto
um gato na porta do quarto
deitado, dormindo e impedindo a passagem
no chão gelado
no fim do corredor
onde ouve-se um ranger
de madeira
pesado sobre o chão
o gato não se move
gemidos e urros
do lado de dentro
não faz frio, muito do contrário
a vida retoma um curso
entre dois corpos
e suor
enquanto o beta espera
a próxima troca de água
e o peixe espera pela comida
dormindo


por bruno muniz, 31 de maio de 2013.

terça-feira, 28 de maio de 2013

ACRE

não tinha muitos amigos
era feio, vivia despenteado
com sapatos sujos e roupas velhas
carisma zero
paciência era virtude dos monges
ou dos fracos
exigia submissão e falta de personalidade
pelo menos, pra mim
não fazia a menor questão de cortesia
e não me esforçava pra ser legal
nunca tive tato com as mulheres
e pros caras populares
sempre despertei algum tipo de antipatia
não me queriam por perto
e sempre tentavam me humilhar
talvez pra se defenderem de sua própria miséria
talvez eu merecesse
porém, a verdade é que
ao mesmo tempo que conquistei inimigos gratuitos
ninguém nunca me foi rival
pois, a mim, nenhum era comparável
então, notei que
não incomodar ninguém
poderia até me fazer solitário
mas também me fez
genuíno


por bruno muniz, 25 de maio de 2013.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

ÀS FAVAS


às vezes,
a gente se força a escrever

é como ir ao banheiro
quando não se tem vontade
é incômodo, leva mais tempo que o normal
parece que nunca vai sair nada
uma luta do querer
e o reconhecer que é necessário
contra a natureza
as inspirações, os motivos,
tudo se esvai
porra, por quê?

porque não é porque vai ser uma merda
que será fácil
e quanto mais você acumular isso dentro de você
mais difícil será botar pra fora

e, pior,
mais desagradável será
escrever não é só um talento
tampouco se trata apenas de um exercício
escrever é um ato de bravura
é expurgar os demônios
um descarrego fundamental
e quanto mais enfezado você está
mais é essencial jogar tudo pros ares
foder com tudo de uma vez
quebrar a porra toda
mandar à puta que pariu!

e pra quem não escreve
fica o conselho:
comece a escrever
ou a cantar
a praticar algum esporte de contato
alguma luta bastante intensa
ou mesmo
arrumar uma boa discussão
uma boa e estúpida briga
com alguém que não faça diferença na sua vida
a fim de não ter de perder alguém que lhe seja importante
por sobrecarga

mas, eis um fato
guardar a merda toda pra você
não vai fazê-la feder menos quando
enfim,
você mandá-la
esgoto abaixo


por bruno muniz, 23 de maio de 2013.

segunda-feira, 13 de maio de 2013

A.R.T.E.


a arte é um erro da vida
da natureza
foi a brecha que o caos encontrou
pra sacanear
pra fazer risada
de onde só se via encaixe
lógica e perfeição

a arte é a conturbação do pensamento
é a chave de fenda que cai
no meio da engrenagem pra instaurar
o desmonte
pra corroer o sistema
pra corromper o indivíduo
deflagrar a ordem
desacatar a autoridade
a explosão, o terror

a arte é o perigo
o desatino
o cuspe na cara do juiz
o chute na bunda do padre
o beijo roubado na noiva frente ao noivo
é o garotinho que desobedece os pais
esperando o castigo
só pelo prazer de assumir
que fez o que não podia

a arte é o que não foi planejado
é aquilo que é impensado
é o fora dos conformes
o susto, o surto,
o assalto
a perturbação da paz gris
o colorir de dias foscos, toscos
é borrar os contornos
é o desafino do trompete
o ritmo quebrado da bateria
a estridente corda de guitarra que estoura

a arte é a surpresa
o angustiante grito que liberta
é o desafio aos deuses ao afirmar que
não, nem tudo está criado!


por bruno muniz, 14 de maio de 2013.

domingo, 12 de maio de 2013

SEM COMPANHIA PRO CAFÉ


jogado entre as colchas
no canto do sofá
fico de olho no teto
rachado, manchado
nos insetos que sobrevoam minha
xícara
de café,
café forte
o mesmo de ontem à noite
quando ela ainda estava
aqui

nos conhecemos num bar
ela bebia
mais que eu
solitária, feito veterano de guerra
fazia sentido
eu estava cansado, com dor de cabeça
ela não era lá grandes coisas
mas
quem disse que eu sou
ela era boa e fácil companhia

troquei meia dúzia de palavras
e parecia que já a conhecia
há muito
viemos pra casa
transamos, fiz um café forte
quando voltei pra cama
ela havia apagado
tomei o café,
o meu e o dela
não trocamos mais uma palavra

hoje, acordei e ela já tinha ido
escreveu com batom no espelho do banheiro
"até logo"
sequer assinou
e não sei seu nome
até pensei em voltar ao bar esta noite
mas acho que ficarei
por aqui,
tomando
café


por bruno muniz, 11 de maio de 2013.

sábado, 11 de maio de 2013

À MENTE INQUIETA


à mente inquieta
repousa a dúvida
perguntas com gosto de remédio
cheiro de fossa e
textura de pele ressecada
distante do conforto ignorante
a alma do pensante não tem lugar à sombra
o preço pago pela curiosidade
o devir da serenidade
o dissabor das próprias vontades

à mente inquieta
repousa um inseto barulhento
maldito sanguessuga voador
que traz, zunindo,
horas de perturbadora reflexão noturna
gratuita dúvida
pulga atrás da orelha
e que não se deixa pegar

à mente inquieta
ladrão rouba a paz
ladram os cães aos domingos de descanso
tornando-os infernos em terra
gemem os gatos à janela durante a noite
tudo tira o sono,
e pelas frestas da janela
invade a luz e o vento gelado
dessa São Paulo solitária, mãe das multidões

à mente inquieta
repousa o desespero
companheiro fiel e desgraçado
de risos tortos e maliciosos
compreensivo amigo
é, à mente inquieta


por bruno muniz, 11 de maio de 2013.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

RICOCHETES


o sujeito arrisca seus tiros
contra um alvo, móvel ou imóvel
não importa, o sujeito atira
inevitável é que, por vezes, o tiro
ricocheteia
o desgraçado simplesmente volta
ensandecido contra tudo
que está no caminho
e principalmente
contra o atirador
e vai acertar
bem na cabeça
do idiota que apertou o gatilho
pensando apenas na diversão
um perfeito imbecil
balas não têm vontade própria
mas pra se divertir
às vezes é preciso pagar um preço alto
que seja a cabeça
que seja o peito
que seja a loucura
que seja a dor
quem atira nunca está imune
por mais que pense
e é tão fácil errar o tiro
eu que o diga


por bruno muniz, 08 de maio de 2013.