quinta-feira, 27 de março de 2014

MADRUGADA PERDIDA

batiam os ponteiros do relógio
os gatos gemiam à janela
as moças dormiam tranquilas
os carros passavam a cada dez minutos
as prostitutas faziam seus últimos programas
a polícia fingia não ver nada enquanto contava a propina
os mendigos maltrapilhos brigavam por uma manta
os ratos rondavam as latas de lixo e bocas de lobo
os boêmios já caíam pelas calçadas escorados uns nos outros
em algum porão, imigrantes costuravam há horas por centavos
eu fumava meu último cigarro esperando-a chegar
não sabia quem, como era, a que horas chegaria
mas esperava, como se fosse minha última chance
era pegar ou largar, um risco perder o “time”
- blem! – soavam três vezes os sinos do relógio
não restava uma gota de cerveja, nem de água
apenas o cheiro de mofo do quarto inabitável, a não ser,
por mim mesmo
quando ela chegasse, eu a atenderia?
abriria a porta tal qual abri minha alma?
não tinha certeza se teria a coragem necessária
coragem de entregar a alguém minha solidão
e, portanto, minha independência miserável
ouvi, enfim, um ruído
um som de frenagem de ônibus, o agudo arranhar das pastilhas
o chiar do ônibus parando
corri até à janela, onde dois gatos ainda se enroscavam
pude ver o ônibus partindo, uma mulher entrando no prédio
meu coração disparou, o peito se apequenou... fiquei sem ar
suava em bicas, não tomara banho, merda!
fui tomado de certezas, ansiedade e coragem
tropecei em meus sapatos no corredor, joguei uma água no rosto
lavei as axilas na pia
corri pro quarto e me dei um banho de loção pós-barba,
não tinha perfume
recolhi as latas de cerveja, as bitucas de cigarro
guardei uma guimba pra depois
coloquei uma camisa limpa, ao menos mais limpa que a anterior
joguei um livro marcado nas páginas finais, o qual nunca comecei a ler,
em cima da mesa de centro
desliguei a tevê e aguardei... fiz tudo em segundos, meu recorde pessoal
a campainha não soava, a porta não apresentava sombra ao rodapé
estranhei
fui até à mesma e meti os olhos no olho-mágico
lá estava ela, de mala e cuia nas mãos, olhando pra baixo
refleti, ela era linda e tinha um ar triste... fiquei observando-a
até que resolvi abrir, mas estava trancada e as chaves não estavam lá
corri para encontrá-las e, quando enfim cheguei e destranquei a porta,
não havia mais ninguém ali...
desci correndo até o portão do prédio e, ao sair, pude ver...
um táxi partia...


por bruno muniz, algum dia de 2013.

Um comentário:

  1. Pois é, às vezes ambos ficam ansiosos. Um sem saber onde meteu as chaves da porta e a outra que titubeia em apertar o botão da campainha e vai embora. São os encontros e desencontros da vida maluca das grandes cidades.

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